Um Livro onde o trabalho<br>e os seus instrumentos se tornam poesia <a href=#nota> (*)</a>
A grande originalidade deste livro consiste no modo como exprime a relação intensa do operário com os seus utensílios, com o ferro que ele molda, com a própria fábrica, que é simultaneamente a sua outra casa, o local do seu trabalho, do seu esforço por vezes vibrante, e a sua prisão, o local da sua exploração, do seu sofrimento por vezes lacerante.
Nestas páginas perpassam a rotina e o seu oposto, a revolta, camaradagem entre os companheiros das longas horas de tarefas sempre iguais; os instrumentos do ofício, ora amados ora detestados; os momentos de pausa, a marmita e o pão, os risos e as pragas, o espaço de clausura, o ruído das máquinas, não poucas vezes atroador, os momentos de angústia, de desânimo, de interrogação triste sobre o amanhã.
José Vultos Sequeira é operário metalúrgico e todos estes poemas são o resultado de uma experiência profunda, que ele transforma agora em palavras.
Poderá haver quem ache este livro repetitivo e, de certo modo, ele o é, mas dessa mesma reiteração de motivos, de percepções, de sensações do dia a dia da oficina ou da fábrica, resulta precisamente a inesperada força e beleza desta obra.
Os versos de Vultos Sequeira, martelados como a própria matéria do seu labor, com ela fundidos numa liga dura e brilhante, alinham se monotonamente, mas com extraordinária força, ora como gritos metálicos ora como plangentes acusações, nas 196 páginas de Homem da Fábrica.
Outras vezes, porém, as paredes da fábrica ou da oficina como que se rasgam, abrem se ao súbito chamejar de um sonho que, na sua penumbra, parece ser o da grande fraternidade, o da «festa» dos trabalhadores.
Um dos poemas que reflectem essa espécie de premonição de difusa epifania libertária, intitula se precisamente «A Nossa Festa» e diz o seguinte:
«Na oficina assim vivemos a nossa vida / misturamos o nosso calor ao calor do ferro / perguntamo nos o significado das paredes altas / e soldando um pedaço de ferro / parece nos ouvir o mundo suspirar / e o coração segreda nos a loucura de um sonho / quando nos olhamos nos olhos / revelamos no silêncio a inquietação / e dizemos sem palavras a nossa tristeza o nosso querer / sorrimos se construímos a nossa festa na dureza dos ferros.»
Este não é um livro apologético ou demagógico, feito com palavras de ordem, como uma lição aprendida. É um longo texto amassado com bocados de existência, amargos, e alguns respiradouros de esperança.
José Vultos Sequeira, operário que como tal se assume, já foi também trabalhador da construção civil, padeiro, empregado de hotelaria, teve diversas profissões. A de funileiro foi a que sem dúvida mais o marcou. Mas nos seu poemas há marcas escaldantes do forno da padaria e da própria relação com o pão. Cito um excerto do seu belo poema, por vezes asfixiante, «O Suor do Teu Rosto»:
«mas é uma crueldade vir ao mundo para isto / este arder enquanto lentamente se morre / este respirar fogo e gelo este olhar de mãos vazias / minuto a minuto interrogar / minuto a minuto doer
e a tendeira rola é uma nora a tirar pedras / e tu não és nada ou és assim um alcatruz roto / e a água dos dias essa água ácida nas tuas veias / essa água gritos escritos no silêncio / dos corpos / quando a tendeira / é uma pedra aguçada
e o mundo o mundo é uma boca / escancarada / um rosto / que se esqueceu de sorrir / e nas tuas mãos o pão o doce do pão / a chorar / e à tua volta os rostos / as vozes choram / e às vezes sorriem
e tu na padaria ouves ouves a noite / cantar como uma criança».
Aqui surge tudo o que há de mágico e por vezes de essencial nesta relação intensa e dramática do homem com a matéria primordial, bíblica, o pão, com a água dos dias, a água ácida, negativa, com o tempo, que minuto a minuto é dor, com a noite cósmica, que lá fora canta como uma criança. Tudo isto é autêntica poesia.
Descobrir a vida, o trabalho incessante e o lazer frustrado, a felicidade que se pressente mas se recusa, nos poemas de José Vultos Sequeira é o que vos proponho.
Homem da Fábrica é mais do que uma visão do homem laborando com os seus instrumentos e com a matéria, é uma anotação dolorosa, e que se transcende, da experiência vital profunda de um trabalhador que no trabalho e na sua angústia se torna poeta e nos faz ver esse seu renascimento.
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(*) José Vultos Sequeira, O Homem da Fábrica, Ed. Utopia, 196 págs.
Nestas páginas perpassam a rotina e o seu oposto, a revolta, camaradagem entre os companheiros das longas horas de tarefas sempre iguais; os instrumentos do ofício, ora amados ora detestados; os momentos de pausa, a marmita e o pão, os risos e as pragas, o espaço de clausura, o ruído das máquinas, não poucas vezes atroador, os momentos de angústia, de desânimo, de interrogação triste sobre o amanhã.
José Vultos Sequeira é operário metalúrgico e todos estes poemas são o resultado de uma experiência profunda, que ele transforma agora em palavras.
Poderá haver quem ache este livro repetitivo e, de certo modo, ele o é, mas dessa mesma reiteração de motivos, de percepções, de sensações do dia a dia da oficina ou da fábrica, resulta precisamente a inesperada força e beleza desta obra.
Os versos de Vultos Sequeira, martelados como a própria matéria do seu labor, com ela fundidos numa liga dura e brilhante, alinham se monotonamente, mas com extraordinária força, ora como gritos metálicos ora como plangentes acusações, nas 196 páginas de Homem da Fábrica.
Outras vezes, porém, as paredes da fábrica ou da oficina como que se rasgam, abrem se ao súbito chamejar de um sonho que, na sua penumbra, parece ser o da grande fraternidade, o da «festa» dos trabalhadores.
Um dos poemas que reflectem essa espécie de premonição de difusa epifania libertária, intitula se precisamente «A Nossa Festa» e diz o seguinte:
«Na oficina assim vivemos a nossa vida / misturamos o nosso calor ao calor do ferro / perguntamo nos o significado das paredes altas / e soldando um pedaço de ferro / parece nos ouvir o mundo suspirar / e o coração segreda nos a loucura de um sonho / quando nos olhamos nos olhos / revelamos no silêncio a inquietação / e dizemos sem palavras a nossa tristeza o nosso querer / sorrimos se construímos a nossa festa na dureza dos ferros.»
Este não é um livro apologético ou demagógico, feito com palavras de ordem, como uma lição aprendida. É um longo texto amassado com bocados de existência, amargos, e alguns respiradouros de esperança.
José Vultos Sequeira, operário que como tal se assume, já foi também trabalhador da construção civil, padeiro, empregado de hotelaria, teve diversas profissões. A de funileiro foi a que sem dúvida mais o marcou. Mas nos seu poemas há marcas escaldantes do forno da padaria e da própria relação com o pão. Cito um excerto do seu belo poema, por vezes asfixiante, «O Suor do Teu Rosto»:
«mas é uma crueldade vir ao mundo para isto / este arder enquanto lentamente se morre / este respirar fogo e gelo este olhar de mãos vazias / minuto a minuto interrogar / minuto a minuto doer
e a tendeira rola é uma nora a tirar pedras / e tu não és nada ou és assim um alcatruz roto / e a água dos dias essa água ácida nas tuas veias / essa água gritos escritos no silêncio / dos corpos / quando a tendeira / é uma pedra aguçada
e o mundo o mundo é uma boca / escancarada / um rosto / que se esqueceu de sorrir / e nas tuas mãos o pão o doce do pão / a chorar / e à tua volta os rostos / as vozes choram / e às vezes sorriem
e tu na padaria ouves ouves a noite / cantar como uma criança».
Aqui surge tudo o que há de mágico e por vezes de essencial nesta relação intensa e dramática do homem com a matéria primordial, bíblica, o pão, com a água dos dias, a água ácida, negativa, com o tempo, que minuto a minuto é dor, com a noite cósmica, que lá fora canta como uma criança. Tudo isto é autêntica poesia.
Descobrir a vida, o trabalho incessante e o lazer frustrado, a felicidade que se pressente mas se recusa, nos poemas de José Vultos Sequeira é o que vos proponho.
Homem da Fábrica é mais do que uma visão do homem laborando com os seus instrumentos e com a matéria, é uma anotação dolorosa, e que se transcende, da experiência vital profunda de um trabalhador que no trabalho e na sua angústia se torna poeta e nos faz ver esse seu renascimento.
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(*) José Vultos Sequeira, O Homem da Fábrica, Ed. Utopia, 196 págs.